UM LUTO DA LÍNGUA
Julia Vaz. Lisboa, janeiro 2021.
Desde que cheguei em Portugal, tenho uma sensação estranha ao conversar com os portugueses, mas até agora não havia pensado muito sobre a origem ou natureza desta sensação. Porém, ao passar por uma situação de agressão verbal aqui recentemente, comecei a refletir e entender melhor algumas coisas sobre isso.
Para fins de contexto, a “situação-gatilho” aconteceu quando eu e meu marido estávamos numa pequena cidade a uma hora de Lisboa para resolver questões burocráticas relativas à minha residência aqui. Na volta, eu estava com fome e decidi parar em uma pastelaria (como chamam a nossa padaria) e comprar algo para levarmos e comermos no trem. Não me ocorreu que poderiam não aceitar pagamento em cartão por estar muito habituada a pagar com cartão em todo lugar no Brasil, então simplesmente fiz o pedido ao homem que estava no balcão. Quando fomos pagar e nos disseram que de fato não aceitavam cartão como pagamento, ficamos um pouco sem reação e sem saber muito o que fazer. Dissemos que não tínhamos dinheiro em espécie e aguardamos uma resposta dos funcionários por alguns instantes, que pareciam nos ignorar e atender outras pessoas que estavam aguardando. Então, pela décima vez pedimos desculpas e nos direcionamos à porta sem levar os sanduíches. O homem nos chamou de volta e foi muito ríspido dizendo que tínhamos que pagar porque ele não podia ficar com a mercadoria daquele jeito. Uma moça que também estava no balcão foi um pouco mais gentil e nos disse que havia um ATM próximo, onde podíamos sacar o dinheiro para fazer o pagamento, então dissemos que iríamos fazer isso. Depois de alguns passos fora do estabelecimento, o homem saiu pela porta e começou a gritar em nossa direção no meio da rua, nos agredir dizendo que “não era parvo” e que não caçoássemos dele.
O que mais me chocou foi que nós em nenhum momento caçoamos de ninguém, nem fomos rudes com ninguém e nem desrespeitamos ninguém, portanto não fazia o menor sentido estarmos sendo agredidos daquela forma. Então, me lembrei que, desde que entramos no local, senti que fomos observados e tratados de forma dura.
Em princípio, isso não me surpreendeu, pois eu havia até então entendido o “jeito de ser” dos portugueses como mais “duro”, rígido ou que, em comparação com o jeito dos brasileiros, poderia parecer mais grosseiro. Eu apenas notava as diferenças no tom, no tratamento, no jeito de comunicar certas coisas, e me parecia natural que essas diferenças existissem entre países e culturas e que eu estivesse passando por um período de adaptação.
Acontece que, neste dia, depois da crise de choro e de me sentir humilhada sem razão, a questão da xenofobia pairou sobre minha cabeça, algo que já havia sido comentado por alguns conhecidos brasileiros que moram ou moraram aqui, algo que inclusive testemunhamos de forma clara pouco depois que chegamos, mas que talvez ainda não tivesse sido direcionado a nós especificamente. E comecei a me perguntar se de fato não havíamos sofrido nenhuma ofensiva direta, ou se essa sensação de “adaptação” e se o “jeito duro” dos portugueses era na verdade uma simples diferença de tratamento.
E então, qual é a primeira forma de saber com certeza que você é estrangeiro? É só abrir a boca para falar.
Um pouco depois de passarmos por essa situação, recebi o tuíte e respectivas respostas a seguir de uma amiga.
Me fez lembrar de uma conversa que tive com uma colega de curso aqui sobre o uso do “você” no português do Brasil. Estávamos falando justamente sobre essas diferenças e, sobre esta em específico, ela me disse que, em Portugal, o “você” é algo dito por quem “não tem educação” ou uma forma menos respeitosa de se tratar alguém. Sempre achei curioso que se utiliza mais o “tu” aqui do que o “você”, mas nunca liguei isso a questões de respeito, e, por mais que minha colega tenha usado muitas aspas ao me informar sobre isso, eu entendi que afinal é isso o que a grande maioria dos portugueses acha dos brasileiros: que não os tratamos com respeito.
E isso foi o que me motivou a escrever este post. Essa sensação de que eu falei nas primeiras linhas ter revelado um luto da minha língua, uma impressão de que eu não podia mais falar o “meu” português aqui por receio de estar falando com algum desrespeito, ou de ser mal interpretada.
Veja bem, a minha intenção não é convencer ninguém de que um português é certo e o outro é errado, ou de que um é bonito e o outro é feio. Eu quero entender como alguém é convencido de que a sua língua - uma forma de expressão viva que evolui e se transforma com o tempo -, mesmo implantada em outro território à força, deveria ou poderia permanecer fiel à sua dita origem sem sofrer qualquer influência da cultura e das línguas dos povos circundantes. Veja o que a Wikipédia diz:
Em todos os aspectos — fonética, morfologia, léxico e sintaxe — a língua portuguesa é essencialmente o resultado de uma evolução orgânica do latim vulgar trazido por colonos romanos no Século III a.C., com influências menores de outros idiomas e com um marcado substrato céltico. O português arcaico desenvolveu-se no Século V d.C., após a queda do Império Romano e as invasões germânicas, ditas bárbaras, como um dialeto românico, o chamado galego português, que se diferenciou de outras línguas românicas ibéricas. Usado em documentos escritos desde o século IX, o galego-português tornou-se uma linguagem madura no século XIII, com uma rica literatura. Em 1290 foi decretado língua oficial do reino de Portugal pelo rei D. Dinis I. O salto para o português moderno deu-se no renascimento, sendo o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516) considerado o marco. A normatização da língua foi iniciada em 1536, com a criação das primeiras gramáticas, por Fernão de Oliveira e João de Barros.
Para além do português de Portugal ser ele próprio uma derivação de um misto de outras línguas, como pode uma história de colonização - uma colonização real e não "invertida por via da língua" - como a do Brasil não ser em si punição suficiente para seu povo? O que dizer dos diversos povos nativos e africanos (para citar apenas uma parte da diversidade de povos presentes no Brasil desde sua dita “descoberta”) que não somente tiveram negado qualquer respeito à suas origens, mas foram também perseguidos apenas por expressá-las? E, ao mesmo tempo, como negar o que há de maior valor na beleza e riqueza de uma língua que está longe de ser somente portuguesa?
Talvez o problema esteja justamente aí. Há uma coisa que não se governa, que não se controla e não se coloniza no português falado fora de Portugal. Há uma resistência no ato de falar português do Brasil aqui, assim como há uma resistência no ato de falar a língua das periferias. É essa vontade de liberdade, de ser quem se é. É esse direito de evidenciar a autenticidade da língua dentro da qual nascemos imersos, para além das gramáticas, normas cultas, acordos ortográficos.
O ato e forma de comunicarmo-nos uns com os outros é também uma expressão genuína da nossa alma e da nossa cultura, e qualquer evolução e transformação da língua não deveria ser inibida, mas sim abraçada e celebrada.
Não me limito aqui a olhar somente para o preconceito linguístico que se vive como brasileirx em Portugal, mas me proponho também a olhar para o outro lado dessa moeda. Qual o preconceito linguístico que eu pratico ao corrigir o português de alguém que vive uma realidade diferente da minha? Qual o preconceito linguístico que eu exerço ao julgar o que é uma forma “educada” ou “não educada” de se falar certa coisa? Qual o nível de arrogância da minha fala ou da minha escrita que faz com que ela seja dirigida somente a uma bolha de pessoas mimadas e privilegiadas? Finalmente, o quão arrogante é alguém que se sente no direito de determinar o que é o português correto?
Proponho perguntarmos a nós mesmos: o que a nossa língua, em todas as formas sociais, está dizendo para nós e sobre nós?