VIPARITA KARANI
Julia Vaz, junho 2021.
Viparita Karani com bloco e, ao lado, com mantas.
Quem faz aulas regulares de Iyengar yoga já está muito familiarizade com Viparita Karani. Viparita significa ‘invertido’ ou ‘revertido’ enquanto Karani significa ‘aquele que faz’, portanto Viparita Karani pode se referir essencialmente a qualquer postura invertida. Mas você sabe por que esta prática, como todas as outras posturas, não tem o sufixo -asana? Aqui vamos vou falar um pouco sobre isso e outras curiosidades e conhecimentos relacionados a ela.
Uma das respostas para esta pergunta é que Viparita Karani, embora esteja próxima às invertidas e tenha características e benefícios semelhantes a Sarvangasana, não é considerada nos textos clássicos uma postura ou asana, mas sim um mudra, segundo o Hatha Yoga Pradipika[1] e o Gheranda Samhita [2] ou um pratyahara, segundo o Goraksha Shataka [3].
“Mas mudras não são aqueles gestos com as mãos?”, você poderá se perguntar. Sim, também. Só que os mudras não se fazem somente com as mãos, como estamos habituados a associá-los, mas muitas vezes com o corpo todo.
De acordo com Swami Satyananda Saraswati em seu aclamado livro Asana Pranayama Mudra Bandha, “A palavra sânscrita mudra é traduzida como ‘gesto’ ou ‘atitude’. Mudras podem ser descritos como gestos ou atitudes psicológicas, emocionais, devocionais e estéticas. Yogis experimentaram os mudras como atitudes de fluxo de energia, com a intenção de conectar a força prânica individual com a força universal. O Kularnava Tantra [4] atrela a palavra mudra à raiz mud, que significa ‘deleite’ ou ‘prazer’ e dravay, a forma casual de dru, que significa ‘destacar’. Mudra também é definido como um ‘selo’, ‘atalho’ ou ‘desvio de circuito’.”
Ainda a mesma fonte diz que “Mudras são uma combinação de movimentos físicos sutis que alteram o humor, a atitude e a percepção, e que aprofundam a consciência e a concentração. Um mudra pode envolver o corpo todo em uma combinação de asana, pranayama, bandha [5] e técnicas de visualização, ou pode ser simplesmente uma posição de mãos.”
No caso da definição proveniente do Goraksha Shataka, Viparita Karani estaria dentro de pratyahara, ou seja, abstenção dos sentidos da percepção. Para que possamos desfrutar de toda a infinidade de interpretações que os textos clássicos permitem, deixarei abaixo alguns aforismas deste em específico que circundam os aspectos e instruções de Viparita Karani [6]:
“55. Pratyahara: O Sol (localizado no umbigo) absorve para si mesmo a corrente de néctar que flui da Lua (situada na base do palato). A ação de evitar essa absorção é denominada pratyahara.
56. A mulher proveniente do disco da Lua é desfrutada por dois. Um terceiro, diferente dos dois, libera-se da decadência da morte [7].
57. Na região do umbigo, há um Sol ardente e, na base do palato, está sempre a Lua, repleta de néctar.
58. A Lua, inclinada para baixo, libera amrta (néctar), e o Sol, com sua boca para cima, o absorve. É por isso que se deve conhecer a prática pela qual se evita que o suculento néctar seja consumido.
59. O umbigo deve estar acima e o palato abaixo, o Sol acima e a Lua abaixo. Essa ação é conhecida como Viparita Karani ou ação invertida, e deve ser conhecida pela palavra do guru.
60. Os yogins conhecem anahata chakra, localizado no coração, de onde o touro atado três vezes muge com força.
61. Depois de passar através de manipura e tendo cruzado anahata chakra, quando o prana chega ao grande lótus de sahasrara, através de vishuddha e ajna chakras [8], o yogin torna-se imortal.
62. A sílaba ‘vi’ (de vishuddha) significa hamsa (respiração, prana) e ‘shuddha’ significa puro. Desse modo, os conhecedores dos chakras conhecem o situado na garganta como vishuddha.
63. Se o néctar da Lua for retido no grande vishuddha chakra, evitando a boca do Sol, o yogin se libertará da decadência da velhice em um mês.”
O Gheranda Samhita tem uma definição e instrução deste processo um pouco mais sintética, veja:
“29. Viparitakarani mudra: surya reside na raiz do umbigo, e chandra, na base do palato [9]. O homem sucumbe à morte porque absorve a ambrosia.
30. Esse processo pelo qual surya é levado para cima e chandra é levado para baixo denomina-se viparitakarani mudra, que é mantido em segredo por todos os textos yogins.”
Agora veja a definição e instruções do Hatha Yoga Pradipika:
“III.78. Agora, Viparita Karani Mudra. Existe uma ação divina pela qual a boca do Sol é enganada. Deve ser conhecida pelas lições de um guru, não por dez milhões de textos sagrados.
III.79. Com o umbigo para cima e o palato para baixo, o esplendor para cima e a lebre para baixo. Isso é chamado instrumento invertido, obtido pela fala do guru.
III.80. Pela prática constante e frequente, o fogo digestivo aumenta. Deve ser dado alimento abundante ao que segue esta prática.
III.81. Se houver pouco alimento, o fogo o queimará rapidamente. No primeiro dia, ele deve ficar apenas um período com a cabeça para baixo e os pés para cima.
III.82. Dia após dia, ele deve praticar cada vez um pouco mais. Depois de seis meses, não serão mais vistas rugas e cabelos grisalhos, realmente. Quem praticar sempre por um período de três horas destruirá o tempo.”
Uma coisa em comum entre os textos clássicos é ressaltar a importância de Viparita Karani como uma espécie de “elixir da juventude” ou da “imortalidade”. Mas calma. Antes de começar a praticar exaustivamente tentando enganar o tempo, lembre-se que estes são textos antigos que falam de crenças não comprovadas cientificamente.
Além disso, o conceito de “imortalidade” nos textos clássicos é muito debatido justamente por não significar simplesmente que o corpo físico não irá morrer, mas sim uma libertação do ciclo vida-morte-sofrimento, uma compreensão de que não somos o corpo físico e nem toda a realidade que interage com este corpo, mas algo além, cuja essência é parte integrante da ordem e força universais.
Mas então, onde entra o Iyengar yoga nessa história toda?
Bem, primeiramente o Iyengar yoga nunca foi destacado dos textos clássicos, pelo contrário. Quem já praticou com a família Iyengar na Índia sabe que as aulas são cheias de citações a estes textos, principalmente aos Yoga Sutras de Patañjali [10] e ao Hatha Yoga Pradipika. Portanto, é de comum acordo entre os praticantes de Iyengar yoga que Viparita Karani é uma parte importantíssima da prática. Tanto é que há várias montagens disponíveis, utilizando seus benefícios para diferentes casos, dependendo de cada tipo de corpo ou de qualquer tipo de patologia ou questão estrutural, e existe um prop feito exclusivamente para isso - o Viparita Karani Bench (banco de Viparita Karani, na foto ao lado). Vejamos algumas dessas variações:
Prana Mudra
Variações com suporte para as pernas
Com as pernas em baddha konasana, com a cadeira e a mais comum em práticas de grupo, com bolsters e pernas contra a parede.
Dentre os benefícios físicos e mentais desta postura destacados na prática de Iyengar yoga, estão: relaxamento dos órgãos abdominais, regulação hormonal, maior eficiência respiratória, passividade e tranquilidade mental.
Com esse pequeno estudo, espero ter esclarecido a você um pouco mais sobre Viparita Karani e também que você desfrute desta prática tanto quanto eu na minha prática pessoal. A não ser durante meu período menstrual, acho que ela está incluída na minha prática quase diariamente. Amo de paixão!
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REFERÊNCIAS
[1]Hatha Yoga Pradipika, Svamin Svatmarama. Mantra, 2017. São Paulo, Brasil
[2]Essência Do Hatha Yoga, Alicia Souto. Phorte Editora, 2009. São Paulo, Brasil.
[3]Essência Do Hatha Yoga, Alicia Souto. Phorte Editora, 2009. São Paulo, Brasil.
[4]Kularnava Tantra é um tratado de 1150 d.C. sobre a filosofia shakta da tradição tântrica, ele foi publicado pela primeira vez em 1875 com 2038 versos em inglês. A tradução foi completada por M.P. Pandit e Sir John Woodroffe em 1918. O texto trata da relação entre mestre e discípulo.
[5]Asanas são as posturas físicas, Pranayamas são as respirações controladas e Bandhas são os 'selos' internos dos esfíncteres do corpo.
[6]Essência Do Hatha Yoga, Alicia Souto. Phorte Editora, 2009. São Paulo, Brasil.
[7]"Mulher aqui é simbolismo do néctar que passa por duas passagens: garganta e umbigo, e sua não absorção evita que se deteriore, outorgando, assim, a imortalidade e libertando-se do envelhecimento, e o ser é, então, o obsevador." (Essência do Hatha Yoga, p. 472)
[8] Manipura - umbigo; Anahata - coração; Vishuddha - laringe; Ajña - entre as sobrancelhas; Sahasrara - topo da cabeça.
[9]Surya - Sol; Chandra - Lua.
[10]B.K.S. Iyengar escreveu seu próprio comentário dos Yoga Sutras, intitulado Light on the Yoga Sutras of Patañjali.